Aborto Espontâneo
Acontece em cerca de 15-25% das gravidezes. Mais, porque muitos acontecem antes de ser confirmada a gravidez e mascarados sob a forma de um atraso de menstruação.
Assunto tabu, finge-se um pouco que não existe. Eu que o diga. Também participei nessa ilusão da nossa sociedade. Por isso só se conta aos três meses, quantas de nós sofrem em silêncio. E sofre-se, física e psicologicamente. Fala-se no assunto e afinal, já alguém sofreu ou conhece bem alguém que sofreu.
Agora, outra informação, e neste assunto nada será bom. Pode ser completo ou incompleto. Aqui coloca-se mais uma situação. Se não for completo pode requerer cirurgia. Dependendo dos casos primeiro tenta-se abordagem não invasiva sob a forma de protocolo medicamentoso para expulsão na consulta. A hemorragia pode ser severa e por isso é feito com vigilância. Caso não resulte, dilatação e curetagem. Bloco, internamento, com o risco de infecção associado, bem como risco de danificação do útero. E mesmo aqui a remoção dos produtos de concepção pode não ser completa.
Eu sei que é pelo melhor, sei que o corpo tem mecanismos eficazes para avaliar a viabilidade dos embriões. Eu sei tudo isso. Só queria que o melhor fosse mesmo um bebé saudável. E não peço muito. Pedi, esperei, almejei, que tivesse sido desta última, pelo menos. Não foi.
Aborto de repetição é mais raro, afecta 5% das mulheres. A lotaria invertida na merda que já é o aborto espontâneo. São três ou mais abortos espontâneos. Em muitos casos pode ser considerado como dois ou mais. Nestes casos tenta saber-se a causa fisiológica responsável, o protocolo é a partir de três, mas já se começa a estudar as causas a partir do segundo, em alguns casos. Pode não haver.
Os factores de risco são idade da mulher, do homem, perda gestacional anterior, alterações cromossómicas e genéticas, alterações anatómicas, trombofilias, alterações endócrino-metabólicas, alterações imunológicas, infecções. Passo seguinte, testes:
Ecografia detalhada do útero,
Análises: cardiolipinas, imunoglobulinas, síndrome anticorpo anti fosfolipídico, tsh, prolactina, trombofilias, protrombina, antitrombinas e um sem número de items,
Cariótipo do casal.
Questão: é melhor que haja causa fisiológica ou não? Se houver, há tratamento, uma linha mais clara, uma explicação. Quando não há, ficamos desamparadas, o protocolo medicamentoso segue-se mas não há garantias do sucesso, aliás, não há diferença entre o fazer ou não. Mas faz-se, porque nos agarramos a qualquer coisa.
Na primeira gravidez não se pensa no assunto, sabemos que não devemos contar a toda a gente, mas permanece uma possibilidade remota, um pesadelo no qual não nos permitimos pensar. Com uma gota de sangue soube, dentro de mim, que tinha acabado ali, enquanto conduzi para a urgência. A partir daí a felicidade vem a medo acompanhada pela ansiedade, e quando acontece novamente reconhecemos os sinais. A gravidez seguinte é de risco, o tratamento farmacológico intensifica, o pânico é diário, convivemos com o pesadelo diariamente, e verificamos obsessivamente pelos sinais anteriores. Até que é diferente das anteriores e descobrimos na consulta que o sonho uma vez mais se perdeu, que desta vez se desmoronou tudo, de uma forma diferente e nova. Quando respiramos de alívio porque conseguimos novos recordes de tempo gestacional e estamos quase na primeira meta, a vida se encarrega de nos acordar.
Aqui vos digo, cada um dói com a força acumulada dos anteriores, cada vez mais.
Recebi os resultados das análises de primeiro trimestre e já não estava grávida, mais de una vez. Da última vez no dia que ia fazer análises, adiadas por medo irracional, já não as fiz, fui antes encaminhada para a sala de trabalho, para o protocolo.
Da fertilidade já se fala bastante. Séries como friends já acabaram há dez anos e o assunto era abordado. O aborto, e especialmente o aborto de repetição continuam na penumbra, nas conversas evitadas, nos olhares desviados. São situações igualmente más, senão piores, e até podem acontecer ao mesmo casal.
Ando a ando a adiar este post há algum tempo. Mas honestamente já repeti este historial à exaustão, urgências, consultas, consultas de outras especialidades. A dado momento ponderei fazer um cartão explicativo que me poupasse à repetição.
Aqui entram as gafes de profissionais.
É o primeiro?
Não, o terceiro.
Ah, então já tem filhos.
Não, não tenho.
Ai, desculpe. Vai ser da próxima, não se preocupe, é novinha.
(A senhora não é, e com os anos disto que tem mais noção no palavreado, impunha-se, ler o meu processo antes de fazer a ecografia era o mínimo e paternalismos a esta hora e comigo em posição ginecológica é que não).
Entre muitas outras. Mas, ressalvo, fui e estou a ser muito bem tratada, adorei 99% dos profissionais, até os administrativos têm outro tacto e por isso não voltei ao privado. No privado, apenas gostei da médica que me atendeu na urgência da segunda gravidez.
Outra das muitas coisas que é preciso é uma força acima do comum, porque é uma perda, para além dos sintomas físicos. A história pessoal é repetida um número bizarro de vezes. Todos os papéis dizem aborto. O motivo das consultas e ecografias vem com o motivo, aborto de repetição. O talão de vencimento diz licença por interrupção da gravidez. Nem que queiram esquecer, a cada minuto de cada dia, há um pormenor com as letras garrafais a lembrar os dias de sofrimento que culminam em contracções e no inevitável, as urgências, as consultas de revisão, tudo vos grita na cara o que nem que queiram podem esquecer. Quando se tem essa sorte, porque ser internado para uma curetagem é muito pior. Agradeço à instituição em que tive internada que não me colocou num quarto com uma grávida ou parturiente. Seria agravar insulto à perda. Terá sido pensado, se não o fosse podiam contar com uma reclamação. Ninguém deve passar por isso.